quinta-feira, 25 de março de 2010

As duzentas chaves de seu Antônio

Eu estava trabalhando desde as seis da noite e a previsão era de entrar pela madrugada. Lá pelas nove, com fome, resolvi sair pra fazer um lanchinho. Fui a pé mesmo, pois a lanchonete ficava a uns 500 metros do trabalho. Dava pra ir e voltar tranqüilo - pelo menos foi o que pensei. Na volta, porém, a coisa apertou e eu tive que apressar o passo (pra ser sincero, quando faltavam uns 100 metros eu não agüentei mais e comecei a correr). Ao chegar, encontrei o portão fechado de cadeado e seu Antônio, o vigilante, falando no telefone.

— Seu Antônio, abra aqui por favor!

— Já estou indo!

— Venha logo, que eu tô apertado!

— Já vou! Já vou! Calma!

E lá vem seu Antônio, com um chaveiro que devia ter umas duzentas chaves.

— Abra logo, seu Antônio, que eu não estou agüentando mais! Preciso ir ao banheiro! É urgente!

— Calma, que eu tô procurando a chave!

— Por que o senhor fechou o portão de cadeado? Eu só fui na esquina lanchar!

— Ah, meu filho, são ordis. Num posso deixar aberto não.

— Mas é pra manter fechado só depois da meia-noite, seu Antônio! Ainda são dez horas!

— Eu não tenho relógio, meu filho. Como é que eu vou saber?

— Sei lá, seu Antônio! Agora abre esse portão pelamordedeus senão vai ser aqui mesmo!

— Ai, meu Deus! E eu que não acho a chave certa!

Ele já tinha tentado pelo menos umas quinze, e nada. E o meu desespero aumentando.

— Arrombe esse cadeado, seu Antônio!

— Você tá doido? Aí eu perco o emprego!

— Então vá logo, por Nossa Senhora do Rosário!

— Num me avexe não, meu filho, que é pior! Eu nervoso aí é que num acho a chave mesmo!

A essas alturas, eu já tinha ficado num pé e noutro, pulado, mordido a língua, cravado as unhas na palma da mão, e seu Antônio nada!

— Veja o nome do cadeado, seu Antônio! Aí o senhor procura uma chave que tenha o mesmo nome!

— Aí danou-se! Eu num sei ler!

— Agora lascou! Avie, seu Antônio, que o urubu já tá beliscando a cueca!

— Urubu? Que urubu?

— Nada não, seu Antônio, mas vá logo pelo amor que o senhor tem aos seus filhos!

— Oxente! E quem disse que eu tenho filho?

— Esquece, seu Antônio! Esquece! Não é nada não. Mas por favor abre esse portão senão eu cago nas calças!

— Ai, meu Deus! Eu tô tentando! Meu filho, é melhor você pular o muro que eu não consigo achar essa danada dessa chave não!

E eu olhei pro muro, um murão alto danado, que naquela altura dos acontecimentos mais parecia a muralha da China. Foi me dando um arrepio, uma dor fina na barriga, as pernas foram ficando bambas, e eu já imaginando como ia fazer pra pular aquele muro. Até que seu Antônio, finalmente, gritou:

— Pronto, meu filho! Consegui! Graças a Deus!

Mas eu permaneci parado no mesmo canto, de olhar fixo na parte mais alta do muro, sem responder. E pude sentir a esperança indo embora, saindo de mansinho e deixando para trás um enorme peso na cueca.

— Vá, meu filho, corra! Você não tava com pressa?

— Tava, seu Antônio. Tava. Agora não adianta mais não.

(Versão original publicada no antigo site de A Crônica do Dia, em 21/08/2000)

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